ABUSO E MAUS TRATOS COM ANIMAIS: OMISSÃO E DESACERTOS DO PODER PÚBLICO
Muitas
autoridades ainda se recusam a registrar a ocorrência de maus-tratos aos
animais, recomendando ao cidadão que promova, por meio de entidades protetoras,
a averiguação de denúncias dessa natureza. Nada mais equivocado, pois a prática
configura crime, cuja apuração é de atribuição das autoridades e não de uma
associação civil.
Não raro, a
autoridade policial registra a ocorrência, mas não dá início à investigação do
fato noticiado, a despeito de tratar-se de crime que se apura mediante ação
penal pública incondicionada (art. 26 c/c art. 32 da Lei Federal nº 9.605, de
1998).
Mediante a
notícia de maus-tratos, delegados de polícia e promotores de justiça não se
valem das ferramentas de que dispõem para a salvaguarda dos animais, como a
representação ao juiz, pleiteando a busca e apreensão do animal, para evitar
seu padecimento e morte ainda no curso das investigações, trâmite que tem
levado cerca de dois anos.
Tendo em
vista que as denúncias relatam casos graves, como submissão a espancamentos e
privação de alimento, de abrigo contra as intempéries ou de assistência
veterinária, resta evidente que animal algum resistirá por dois anos em tal
situação!
As condutas
que submetem animais a sofrimento constituem o crime ambiental de que trata o
art. 32 da Lei nº 9.605/98, que comina pena de detenção, de 3 [três] meses a 1
[um] ano, e multa a quem “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar
animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. Convém
ressaltar que o dispositivo legal não se limita à prática de maus-tratos, mas
também compreende como crime os atos de abuso, ferir e mutilar animais. Como a
lei não contém palavras inúteis, conclui-se que as condutas de “abuso” e
“maus-tratos” podem se consumar independentemente da ocorrência de lesão,
imprescindível apenas às modalidades “ferir” e “mutilar”. Se a lesão fosse
condição essencial à consumação daqueles crimes, bastariam os verbos núcleos do
tipo “ferir” e “mutilar” ao tipo, sem a necessidade de o legislador se referir,
também, aos atos de “abuso” e de “maus-tratos”.
Entretanto,
as autoridades insistem na existência de lesão como condição para a ocorrência
do crime de maus-tratos, imposição não contida nos elementos do tipo descrito,
que pode se consumar sem deixar vestígios.
Não se
justifica, dessa forma, a exigência de prova pericial para apuração de abusos e
maus-tratos aos animais, já que o Código de Processo Penal, em seu art. 158, só
exige perícia para infrações que deixam vestígios.
É certo que
a par do sofrimento físico imposto ao animal – que pode ou não deixar vestígios
–, existe sempre o sofrimento mental, igualmente penoso e presente, sobretudo
quando a hipótese envolve a sujeição a confinamento e isolamento contínuos. É o
caso do cão acorrentado, que deve suportar o padecimento de viver sob restrição
da liberdade de movimentos e de locomoção e em constante isolamento, situação
que contraria a sua natureza gregária.
Sofrimento,
também, é o que se impõe aos animais por meio de atos de abuso, prática que
apesar de delitiva é consentida diante do silêncio das autoridades.
Constitui
ato de abuso subjugar o animal para forçá-lo a exercer determinada atividade ou
submetê-lo à situação que lhe impeça a manifestação de seus comportamentos
naturais. Exemplo clássico de abuso se verifica na utilização de animais para
fins de entretenimento humano.
Nos circos,
eles são compelidos à realização de “números” que desafiam suas características
físicas e comportamentais. Nas provas de laço e nas vaquejadas, animais são
transformados em alvo de perseguição. Abusivo, também, é o aprisionamento de
pássaros e aves, privados do voo e do direito à liberdade.
Cita-se,
ainda, a prática, aparentemente simpática, denominada agility, que obriga o cão a ultrapassar obstáculos com grau
considerável de dificuldade e no menor tempo possível, por razões de
competitividade. Só à custa de subjugação o animal se curva à vontade do
instrutor, vencendo as barreiras que lhe são impostas, para mera diversão dos
humanos.
Noutro
ponto, merece registro a omissão das autoridades diante da notícia de
permanência de animal em situação de perigo ou de maus-tratos, em casa
abandonada ou fechada, cujo morador se encontra ausente, em virtude de viagem,
prisão ou mudança. Trata-se de animais abandonados, sob privação de água,
alimento e cuidados de higiene, quando não expostos a condições ainda mais
evidentes de perigo concreto. As autoridades que se negam a invadir a casa
permitem que esses animais sofram uma morte agônica, sem socorro algum. Cumpre
mencionar que é legítima a invasão de domicílio para socorro de animal
abandonado ou vitimado por maus-tratos, uma vez que a Constituição da República
consagra, em seu art. 5º, inciso XI, exceções ao princípio da inviolabilidade
do domicílio, permitindo que nele se adentre em caso de flagrante delito ou
para prestar socorro. É lícita, portanto, a entrada em casa alheia, mesmo sem o
consentimento do morador, ou na sua ausência, se ali houver animal abandonado
ou submetido a maus-tratos. (Grifo meu.)
Nem se diga
que a invasão não está autorizada para prestar socorro a animais e que a norma
citada se destina, exclusivamente, à salvaguarda de humanos, sobretudo porque a
mesma Constituição da República, em seu artigo 225,§1º, inciso VII, declara
incumbir ao Poder Público vedar as práticas que submetam animal à crueldade. Se
a norma não distingue, não pode o intérprete distingui-la. Ademais, o Código
Penal, em seu art. 150, § 3º, inciso II, enuncia que “não constitui crime a
entrada ou permanência em casa alheia, ou em suas dependências a qualquer hora
do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência
de o ser”. Nem mesmo quando o abandono da casa é evidente, os agentes públicos
a invadem, a despeito de não constituir crime a invasão de casas desabitadas, o
que se depreende da redação do § 4º, inciso I, do mesmo dispositivo.
Pelo quanto
se disse, conclui-se que a indiferença e o despreparo das autoridades fazem da
norma jurídica letra morta, incapaz de prover proteção aos seus tutelados.
Apesar de todos os motivos morais que desautorizam a sujeição dos seres vivos a
qualquer tipo de sofrimento e dos inúmeros instrumentos administrativos e
processuais pertinentes ao cumprimento da legislação protetiva aos animais,
ainda prosseguem impunes os atos de abuso e de maus-tratos.
VANICE TEIXEIRA ORLANDI é Advogada e Psicóloga. Especialista
em Psicologia da Educação. Presidente da União Internacional Protetora dos
Animais (UIPA), associação civil fundada em 1895 que instituiu o Movimento de
Proteção ao Animal no Brasil.
Observação: Depois, eu
é que sou a ruim. Abaixo, o Artigo 319 do Código Penal.
Prevaricação - Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar,
indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei,
para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Pena - detenção, de 3
(três) meses a 1 (um) ano, e multa.
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