CARNE DE CAVALO E ESPECISMO
“Não ter conhecido
vida melhor não alivia o sofrimento do animal. Seus desejos fundamentais
permanecem e é a frustração desses desejos que constitui grande parte de seu
sofrimento. Há muitos exemplos: a vaca leiteira, que nunca tem permissão para
amamentar seu bezerro, as galinhas poedeiras, que nunca podem andar ou mesmo
esticar suas asas, a porca, que nunca pode fazer seu próprio ninho ou encontrar
sua comida na natureza, etc. Por fim, nós frustramos o desejo mais fundamental
de todos do animal – o de viver” – David Cowles.
“The
Horsemeat scandal”, ou o escândalo da carne de cavalo, começou no mês
passado quando carne de cavalo foi descoberta em hambúrgueres congelados à
venda no Reino Unido e na República da Irlanda. Desde então, vestígios foram
descobertos em produtos de carne processados e refeições prontas em toda a
União Européia.
Os olhos e
ouvidos abolicionistas já detectam, de primeira, especismo explícito.
Para o
leitor que está chegando agora, especismo é quando elegemos determinadas
espécies animais como mais importantes e dignas de nosso respeito e de nosso
cuidado. Esse é o especismo eletivo. Elegem-se, como mais
importantes, determinadas espécies com base em critérios arbitrários. Para quem
quer começar a saber mais sobre esse conceito, que aqui defini
superficialmente, sugiro alguns textos da Sônia Felipe, aqui na ANDA. E também
a leitura de seu livro, no final do texto.
Se você se
escandaliza com um bife de cavalo no prato dos franceses e acha normal um “bife
à cavalo” no seu prato, você é especista. Se você chora ao ver vídeos em que se
come gato e cachorro e não chora quando come frango à passarinho, mortadela e
salsicha, pois “não consegue fazer a ligação”, você é especista. Em seu texto
“delicadamente canibal”, Affonso Romano de Sant’Anna diz que nunca se conformou
com a idéia de que o bife no seu prato foi cortado do corpo de um ser vivo. E
se denomina “hipócrita e vil. Arrependido e recalcitrante”. Também menciona que
“os pósteros vão nos achar bárbaros. Não apenas por causa dos estúpidos assassinatos
nas ruas de nossas cidades. Bárbaros porque durante milhares de anos achávamos
que os animais, assim como as plantas, eram coisas sem desejos e sem alma”.
Ademais, Tom Regan deixa claro que “quem possui ou não alma imortal não tem
relação lógica com quem possui ou não, direitos”. Se você é “protetor do
animais” e protege os gatos, os cães e os cavalos, mas gosta de um
churrasquinho, você é especista. E sugiro mudar sua denominação para “protetor
dos cães, gatos e cavalos”, não dos animais. Se você já avançou e é um
ovo-lacto-vegetariano ou usa couro, lã, consome mel e laticínios, você continua
sendo especista, pois ainda há animais sofrendo as consequencias de sua escolha
(galinhas, vacas, vitelos, ovelhas, abelhas e etc), fora do círculo dos que você
elegeu libertar. Saber disso não é de todo ruim. Perceber a incoerência do
especismo nas nossas escolhas, geralmente – não sempre - é o primeiro
passo para avançar. Como já mencionei, o texto de hoje é mais uma reflexão
acerca do especismo explícito deflagrado pela cegueira seletiva geral.
Voltando ao
“Horsemeat scandal”: até hoje, autoridades de toda a Europa continuam a
investigar como a carne de cavalo foi parar nas “imaculadas” refeições prontas
rotuladas como carne bovina e suína. A Ikea, rede que possui 18 lojas no Reino
Unido sai-se relativamente bem com o velho discurso de possuir “o compromisso
de servir e vender alimentos de alta qualidade seguro, saudável e produzido com
o cuidado com o meio ambiente e as pessoas que o produzem”. E acrescenta: “Nós
não toleramos qualquer outro ingrediente além dos estipulados em nossas
especificações, garantidos através de padrões estabelecidos, certificações e
análise do produto por laboratórios credenciados”
O rebuliço é
geral: semana passada, uma repórter da BBC adentrou um laboratório na Holanda para
mostrar ao público como são feitos os testes de DNA para identificar se
determinada amostra de comida possui ou não carne de cavalo; ministros da
agricultura se reúnem em Bruxelas para negociações acerca do “escândalo da
carne de cavalo”; varejistas e fornecedores fazem e divulgam testes e mais
testes para garantir ao consumidor que o que eles consomem é carne de vaca/boi
e de porco/porca. A Nestlé, em cujos alimentos britânicos e alemães também
foram encontrados traços de carne de cavalo, rapidamente se pronunciou nos EUA
(seu maior mercado e que também começa a questionar o conteúdo de suas
refeições) dizendo que “não usa carne proveniente da Europa”.
Dos que se
escandalizam por comer involuntariamente a carne de cavalo, uns se preocupam
com a saúde. Outros, com os animais. Cavalos, somente. Porque bois, porcos,
carneiros, peixes, avestruzes, coelhos, rãs, patos, frangos, vitelos, cordeiros,
bizontes e etc. pode.
Dos que se
preocupam com a saúde, a informação que mais tem circulado para rejeitar a
carne equina, é que os cavalos consomem durante seu confinamento para o abate,
um analgésico, o fenilbutazona que pode, pelo consumo humano involuntário da
carne, ter entrado na cadeia alimentar (como se essa fosse “imaculadamente”
saudável). A polêmica voltada para esse foco começou quando testes feitos em
oito cavalos abatidos para consumo alimentar voluntário e consciente (?) na
França, deram positivos para a droga. Há também uma mobilização em nível
governamental, pois em alimentos destinados à merenda escolar pública também
foram encontrados vestígios de carne equina.
Todos fazem
ouvidos moucos às porcarias altamente nocivas encontradas na carne de outros
animais. Todos pensam que, por conter a chancela de uma inspeção sanitária ou
do “abate humanitário”, as demais carnes constituem-se em alimentos saudáveis e
recomendados. Imunes à qualquer degradação nutricional. Continuam a fazer de
seus estômagos e intestinos, cemitérios impregnados de hormônios nocivos e
outros venenos, comprometendo sobremaneira sua saúde. Hormônios injetados,
ingeridos e produzidos pelo stress do confinamento e do abate. Resultantes de
tumores, úlceras, pus, lesões, cistos, contusões, edemas, mordeduras, neuroses
e muita frustração social. Isso nos bois, porcos, carneiros, peixes,
avestruzes, coelhos, rãs, patos, frangos, vitelos, cordeiros, bizontes e etc.
que receberam o carimbo arbitrário de “permitido-o-consumo-bem-estarismo-tratamento-humanitário-manejo-responsável”.
Quão
“saudável” é essa carne que tem seu consumo legitimado em larga escala?
Dos que
dizem se preocupar com os animais (leia-se cavalos), as maiores manifestações
contra seu abate vem dos Estados Unidos. O furdunço é armado em torno da mítica
e nobre imagem do cavalo na história americana. Essa imagem é a que pesa mais
fortemente na campanha anti carne de cavalo no país. Celebridades como o cantor
Willie Nelson, por exemplo, estão em franca campanha para acabar com o abate de
cavalos. Na década de 90, cerca de 100.000 por ano foram mortos, processados e
enviados para a Europa. Em 2012, os três últimos matadouros de cavalos dos
Estados Unidos foram fechados no Texas e Illinois sob pressão da sociedade e de
entidades protetoras dos animais (leia-se, protetores dos cavalos).
Em se
falando de todos os animais confinados e destinados para o abate, Tom Regan
menciona que são “seres completamente destruídos que você só sabe que está vivo
porque pisca, porque olha fixo para você (…) criaturas fora do alcance da ajuda
por piedade ou de pior miséria por indiferença. Mortas para o mundo, exceto
quando amontoados de carne”. Para os abolicionistas, pouco importa se os
animais são realmente tratados humanitariamente. Confinados e feridos ou com
florais de bach e música clássica. O fim é o mesmo. Seja cavalo, boi, porco,
carneiro, peixe, avestruz, coelho, rã, pato, frango, vitelo, cordeiro, bizonte,
não há diferença quando falamos de seus direitos.
Vide a fala
de Eric Vigoureux, vice presidente da Associação de Açougueiros/Produtores de
Carne de Cavalo. Ele defende alegremente em meio a essa atual polêmica,
modernas práticas europeias de matadouros, apontando que os cavalos ficam
inconscientes através do eletrochoque, e em seguida são levados à hemorragia
controlada para não comprometer o sabor da carne. “O animal não sente medo, nem
sofrimento”, diz. Ah, bom. Que alívio muitos podem sentir ao saber disso. Então
são tratados humanitariamente. E todos dormem (e comem) felizes e tranquilos.
São vários
exemplos dessa hipocrisia especista. Michael Johnson, jornalista do NYTimes, radicado em Bordeaux, relata
que certa vez ouviu um casal americano reclamar em um restaurante de Paris que
não poderia encontrar um hambúrguer decente na capital francesa. Quando um
garçom veio para tomar o seu pedido, ele apontou para o “Steak haché
(chevaline)” listado no menu. Ele não mencionou que “chevaline” significa carne
de cavalo(!). Eles pediram isso. Dez minutos depois, eles estavam todos felizes
comendo seus hambúrgueres de cavalo. Se eles soubessem a verdade, relata
Johnson, eles provavelmente teriam saído correndo e gritando na rua. Comer
bois, porcos, carneiros, peixes, avestruzes, coelho, rãs, patos, vitelos,
cordeiros, bizontes, pode. Há um tempo atrás saiu em uma famosa revista de
turismo a entrevista de um famosíssimo chef declarando com a maior naturalidade
do mundo que uma das coisas mais “exóticas” que ele comeu foi o seguinte:
pega-se o bezerrinho recem nascido que acabou de mamar, abre o estômago dele e
come-se o leite já coalhado. Haja dom para abstrair-se. Já comentei isso uma
vez em um dos meus textos aqui na ANDA.
Para os abolicionistas veganos não há
polêmica nesse caso envolvendo o consumo de carne equina. Por inúmeras vezes
somos denominados extremistas radicais. Tom Regan analisa da seguinte forma: “a
verdade pura e simples é que, pontos de vistas extremos, são, às vezes, pontos
de vista corretos (…) então a questão a ser examinada não é ‘eles são
extremistas’? a questão é ‘eles estão certos’? Essa pergunta quase nunca é
feita. E menos ainda, respondida adequadamente. Uma conspiração entre a mídia e
alguns fortes interesses se encarrega disso”.
Discutir
sobre comer ou não carne de cavalo tem o mesmo status de discutir
sobre comer ou não carne de bois, porcos, carneiros, peixes, avestruzes,
coelho, rãs, patos, frangos, vitelos, cordeiros, bizontes e os produtos de seus
corpos. E é bom frisar que, quando me refiro aos animais, estão implícitos
macho e fêmea.
As
justificativas bem estaristas que mais pipocam na maioria das mídias e a falta
de questionamento sobre comer os corpos e produtos de corpos de outros seres
que não o cavalo, só vem reforçar e viabilizar a negligênica perpétua aos
direitos de todos os animais.
Não há
polêmica para os animalistas abolicionistas no “horsemeat scandal”. Apenas a
clara percepção da predominância do especismo explícito, da incoerência e da
hipocrisia.
Referências:
FELIPE, Sonia. Por uma questão de princípios. Alcance e
limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2003.
____________Esquimós e o especismo eletivo. Disponível
____________Especismo eletivo. Disponível
____________A moral tradicional e o especismo elitista.
Disponível em
JOHNSON,
Michael. Opinion : Hungry for horsemeat. Disponível
REGAN, Tom. Jaulas Vazias. Rio Grande do Sul: Lugano, 2006
SANT´ANNA, Affonso Romano de. Tempo de delicadeza. Porto
Alegre: L&PM, 2007.
(CONSCIÊNCIA ANIMAL -
MARCELA GODOY)
(Postado por ANDA – Agência de Notícias de Direitos
Animais)
Nenhum comentário:
Postar um comentário