Edgar Kupfer-Koberwitz foi um sobrevivente do campo de concentração Dachau. Em pedaços roubados de papéis de rascunho e com pedaços de lápis, ele manteve seu diário secreto, que veio à tona após ser libertado em 29 de abril de 1945:
“Eu me recuso a comer animais porque eu não posso me alimentar do sofrimento e da morte de outras criaturas. Eu me recuso a fazer isso, porque eu mesmo sofri tão dolorosamente que eu consigo sentir as dores dos outros pela lembrança dos meus próprios sofrimentos. Eu sou feliz, ninguém me persegue; por que eu deveria perseguir outros seres ou causar-lhes sofrimento? Eu sou feliz, eu não sou um prisioneiro; por que eu devo transformar outras criaturas em prisioneiros e jogá-las em jaulas? Eu sou feliz, ninguém está me machucando; por que eu deveria machucar os outros ou permitir que sejam machucados? Eu sou feliz, ninguém me maltrata; ninguém vai me matar; por que eu deveria maltratar ou matar outras criaturas ou permitir que sejam maltratadas ou mortas para meu prazer e conveniência? Não é natural que eu não inflija a outras criaturas a mesma coisa que eu espero, e temo, nunca seja imposta a mim? Não é a coisa mais injusta fazer essas coisas aos outros sem nenhum propósito além do gozo de insignificante prazer físico, às custas de mortes e tormentos? Esses seres são menores e mais desprotegidos do que eu, mas você pode imaginar um homem racional, de sentimentos nobres, que se basearia nessas diferenças para afirmar o direito de abusar da fraqueza ou da inferioridade de outros? Você não acha que é justamente o dever do maior, do mais forte, do superior, de proteger a criatura mais fraca ao invés de matá-la? Eu quero agir de uma maneira nobre. Eu me lembro da horrível época da Inquisição e eu lamento constatar que o tempo dos tribunais dos hereges ainda não terminou; que todos os dias os homens cozinham em água fervente outros seres que lhes são entregues pelas mãos de torturadores. Eu fico horrorizado ao pensar que estes homens são pessoas civilizadas, não brutos bárbaros, não nativos. Mas, apesar de tudo, eles são apenas primitivamente civilizados, primitivamente adaptados ao seu meio cultural. O europeu médio, flutuando entre ideias eruditas e belos discursos, comete todos os tipos de crueldades com um sorriso nos lábios, não porque ele seja obrigado a fazer isso, mas porque ele quer fazê-lo. Não porque ele tenha perdido sua capacidade de refletir e compreender as terríveis coisas que ele está executando. Oh, não! Apenas porque ele não quer ver os fatos. De outra maneira ele seria interrompido e aborrecido no desfrute de seus prazeres.
Considerando somente as necessidades, alguém pode, talvez, concordar com estas pessoas. Mas, será realmente uma necessidade? Esta tese pode ser contestada. Talvez exista algum tipo de necessidade para estas pessoas que ainda não evoluíram a personalidades conscientes. Eu não estou pregando para eles. Eu escrevo para você, para um indivíduo ainda atento, que racionalmente controla seus impulsos, que se sente responsável interna e externamente por seus atos, que sabe que nossa suprema corte está instalada em nossas consciências e que não há uma corte de apelação contra isso. Existe alguma necessidade que leve um homem totalmente consciente de si mesmo a respaldar uma matança? Em caso afirmativo, cada indivíduo tem que ter a coragem de fazê-la com suas próprias mãos. Esta é, evidentemente, uma covardia miserável: pagar a outras pessoas para sujarem suas mãos de sangue e abster-se do horror e da consternação de fazê-lo…
Eu penso que os homens continuarão a ser mortos e torturados enquanto os animais forem mortos e torturados. Haverá guerras, também, porque matar precisa ser treinado e aperfeiçoado em pequenos objetos, moral e tecnicamente. Eu não vejo razão para me sentir ultrajado pelo que os outros estão fazendo, nem pelos pequenos ou grandes atos de violência e crueldade. Mas eu penso que já está mais do que na hora, de se sentir ultrajado por todos os pequenos e grandes atos de violência e crueldade que realizamos contra nós mesmos. E porque é mais fácil vencer as pequenas batalhas do que as grandes, eu penso que devemos tentar vencer primeiro nossas tendências às pequenas violências e crueldades, para evitar, ou melhor, para superá-las de forma final e definitiva. Então, o dia chegará, quando será fácil lutar e superar até mesmo as grandes crueldades. Mas nós ainda estamos adormecidos, todos nós, em hábitos e atitudes herdadas. Elas são como um molho suculento que nos ajuda a engolir nossa crueldade sem sentir seu amargo gosto.
Este é o ponto: Eu quero crescer em um mundo melhor, onde uma lei maior conceda mais felicidade, em um mundo novo, onde o mandamento de Deus impere: ‘Amai-vos uns aos outros’.”
(Publicado em ViSta-se)
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