Peter Singer
Uma filosofia para consertar o mundo
Grande ícone dos
estudos filosóficos sobre o Utilitarismo - a defesa dos animais e a
distribuição de renda - o australiano Peter Singer acredita na Filosofia como
mediadora dos debates sobre os problemas éticos contemporâneos
Por Laura Talchin
Figura de
destaque nas questões que tangem a Filosofia do Utilitarismo e a defesa dos
direitos dos animais, Peter Albert David Singer sempre está envolvido com
conceitos filosóficos polêmicos da contemporaneidade. Conhecido por seu
trabalho que segue a tradição dos utilitaristas clássicos, suas ideias sobre
felicidade, benefícios e danos, interesses e sentimentos se fundam na crença da
existência de uma forma de vida que responda à equação segundo a qual o
resultado de qualquer ação teria que ser o menor dano causado para o menor
número de seres. Australiano, Singer se formou na Universidade de Melbourne e,
mais tarde, na Universidade de Oxford. Hoje é professor em Princeton, nos
Estados Unidos, mas é também professor laureado na Universidade de Melbourne.
Em sua
grande obra Libertação Animal, lançada originalmente em 1975 (e publicada no
Brasil em 2004), ele defende que animais também podem sentir dor. Tendo no
movimento “Libertação Animal” – não por acaso com o mesmo nome de seu livro – uma
de suas principais frentes de estudos e pesquisas, ele se esforça para chamar a
atenção para os danos que humanos causam às outras espécies. Para Peter Singer,
o mais importante é que o máximo número de seres vivos se beneficie sempre. A
Vida Que Podemos Salvar: Agir agora para pôr fim à pobreza no mundo foi
publicado no Brasil em 2011 e trata sobre um mundo de riqueza exagerada e
pobreza extrema. Para Peter Singer, a Filosofia tem a capacidade de nos lembrar
da moralidade para corrigir esse tipo de injustiça e viver melhor. Acredita na
necessidade da participação de filósofos nos debates públicos e nas questões
práticas e chegou até a se candidatar para o Senado pelo Partido Verde
australiano, mas não foi eleito. Precisamos de políticos representativos
preparados para defender os animais e toda a questão em torno deles. Talvez
precisemos de alguém como um ombudsman.
FILOSOFIA ● Na tradição filosófica, os animais nunca foram
considerados. Alguns pensadores como Tomás de Aquino e Aristóteles diziam que
os animais deveriam servir o homem. Ultimamente, a Filosofia da Mente tem
tratado questões como essa, com filósofos como Daniel Dennett, que abordam em
seus estudos a cognição animal. Desde quando esse paradigma mudou e qual o
espaço e os entraves que encontra no meio filosófico? Você acha que o espaço
destinado aos animais na Filosofia hoje é suficiente?
Peter Albert David Singer ● Bem, está bem melhor agora que na
época de Tomás de Aquino ou Aristóteles! Hoje em dia existem muitos trabalhos
sobre animais em Filosofia e Política. E, além disso, agora há uma disciplina
de “Estudos de Animais,” que estuda animais do ponto de vista de várias
disciplinas, incluindo História, Letras, Sociologia, etc. (Haverá um grande
congresso sobre esse assunto em Utrecht, na Holanda, em julho, chamado “Minding
Animals.”) Mas é suficiente? Não, particularmente quando se considera o grande
número de animais que seres humanos influenciam, em tantas maneiras diferentes,
e o número de espécies com capacidades diferentes.
FILOSOFIA ● Você argumenta contra o Especismo e defende os
direitos de igualdade e os direitos básicos para os animais. De que forma esses
direitos deveriam ser assegurados?
Singer ● Precisamos que as pessoas sejam informadas sobre essas
questões e de um sistema político que responda às preocupações públicas sobre
os animais. Questionários com a opinião pública mostram uma forte oposição
contra a crueldade com os animais, mas, no geral, as pessoas não são bem
informadas sobre o que acontece a eles em lugares escondidos, em fazendas,
laboratórios ou matadouros. Precisamos de mais informação, talvez por meio de
instalação de webcans nos locais onde animais servem para propostas comerciais.
E precisamos de políticos representativos preparados para defender os animais e
toda a questão em torno deles. Talvez precisemos de alguém como um ombudsman de
animais, algo como um cargo em setor público especificamente para proteção dos
animais. Este é o tema do livro de um colega australiano, Siobhan O’Sullivan,Animals,
Equality and Democracy.
FILOSOFIA ● A sua opinião sobre experimentos com animais é de
que, não é que eles não devam ocorrer, mas que o benefício da pesquisa tem que
ser maior do que os danos a eles. Como funciona essa equação, na sua visão, o
que está errado com os experimentos na atualidade e como acha que deveria ser?
Singer ● O que está errado com experimentos atuais com animais
é exatamente que o real valor dos danos não é devidamente considerado. Se
fosse, jamais faríamos grande parte dos experimentos com animais que são hoje
realizados, muitas vezes para resultados triviais, como o para testar a
segurança de colorantes de comida, por exemplo.
FILOSOFIA ● Uma das suas obras famosas é Libertação Animal e
você é bem conhecido pelo ativismo na área de direitos animais e por seu
veganismo. Hoje em dia, muitas pessoas escolhem a comida orgânica e a carne de
animais livres. Essa é uma alternativa eticamente viável?
Singer ● É certamente melhor para os animais a chamada comida
orgânica do que a alimentação de carne, ovos e produtos lácteos
industrializados. Mas a etiqueta do “orgânico” e até “orgânico e livre” não diz
nada sobre como os animais são transportados e mortos. Um outro assunto com o
qual deveríamos nos importar é sobre a “pegada de carbono” de nossa comida, e,
nesse aspecto, os orgânicos não são sempre melhores que a comida
industrializada. Na verdade, para a carne é pior! Isso é porque leva mais tempo
para um gado engordar se está comendo grama no lugar de estar comendo grãos.
Digerir a grama produz mais metano do que o grão, logo, um gado alimentado na
indústria produz menos gás metano para o ambiente.
FILOSOFIA ● Você acha que é possível que animais em cativeiros
possam ser tratados decentemente?
Singer ● Somente se os interesses dos animais forem
priorizados, e não forem subordinados aos interesses dos humanos.
FILOSOFIA ● A Ciência e a Filosofia são complementares na
navegação de questões polêmicas em Bioética, como o aborto e a eutanásia?
Singer ● Sim, são complementares. Mas aplicar a Ciência
corretamente não significa responder aos problemas éticos. Por exemplo, no caso
do aborto, a diferença entre as pessoas que são contra mulheres decidirem fazer
um aborto e as que estão a favor disso, não é baseada em nenhuma declaração
fatual. Poderíamos concordar que o feto é um ser humano vivo individual, mas
ainda poderíamos negar que há direito à vida. O assunto moral do aborto se
constrói na pergunta: quais características um ser tem que possuir para que
seja considerado errado matá-lo? Como eu discuto em outro livro, Éticos
Práticos, não acho que a resposta dessa pergunta possa ser, simplesmente,
porque o ser é um membro da espécie Homo
Sapiens.
FILOSOFIA ● No Brasil, há 7 anos está engavetada um decisão
sobre o aborto de fetos anencéfalos. É um tema que leva em questão aspectos
religiosos e tradicionais. Alguns filósofos citam a questão do aborto para além
do certo e do errado. Como você acha que essa questão deveria ser tratada,
então, de forma prática?
Singer ● Não, não transcende a questão de certo ou errado. No
entanto, como digo em detalhes nos livros Practical Ethics, Rethinking Life and
Death e Writings on an Ethical Life, não é errado abortar um feto antes de que
ele possa sentir dor, o que é apenas possível depois de mais ou menos 20
semanas de gestação – ou seja, muito depois que a maioria de abortos são
feitos. Mas, mesmo depois dessa etapa, na minha opinião, o aborto não é sempre
errado. Caridade não seria um dever. Mas, de um ponto de vista utilitarista,
devemos fazer aquilo que resulte nas melhores consequências para todos, e,
então, seria errado não fazê-la.
FILOSOFIA ● Suas ideias sobre o ser humano e a Bioética vêm de
um conceito filosófico que diz que a qualidade de vida tem importância
fundamental. Os novos estudos da Neurologia e da Medicina influenciam suas
ideias sobre Bioética? Por exemplo, existem pesquisas que mostram que é
possível ter atividade neurológica em pessoas antes consideradas “vegetais”...
Singer ● A evidência mencionada diz somente algo sobre uma
parte específica de minhas opiniões sobre o ser humano, neste exemplo, de como
devemos lidar com uma pessoa em estado vegetativo persistente. Em alguns casos,
podemos captar imagens do cérebro que mostram que o sistema nervoso central foi
destruído, e, portanto, não pode haver nenhuma consciência. Além disso, vale
mencionar que o fato de poder haver mais atividade neurológica do que era
considerado anteriormente não quer dizer que exista uma qualidade de vida
positiva. É melhor ter consciência, se alguém está deitado numa cama sem
capacidade de comunicar-se de jeito nenhum, ou é melhor estar morto? Isso é uma
pergunta ética muito difícil de responder.
FILOSOFIA ● O que as pessoas podem fazer para viver uma vida
mais ética?
Singer ● Não existe apenas uma coisa a ser feita, a menos que
falemos em termos bem genéricos, como: “Considere igualmente os interesses de todos
os seres conscientes.” Mas eu acredito que qualquer pessoa pode deixar de comer
carne, ou pelo menos não comprar produtos de animais criados em fazendas que
servirão para produtos industrializados, e que de qualquer pessoa que possua
mais dinheiro do que as suas necessidades básicas se exija que ela doe para uma
organização que ajude outros que estão em pobreza extrema.
FILOSOFIA ● Aproveitando a sua resposta, o seu conceito de
Utilitarismo é baseado na ideia de que as pessoas que convivem com o excedente
têm uma obrigação moral em ajudar aqueles que vivem com necessidades. Você acha
que os manifestantes do “Movimento Ocupe” estão seguindo na mesma linha? O seu
conceito de Utilitarismo identifica-se com o slogan “Somos o 99% por cento” deste movimento?
Singer ● O Movimento Ocupe acredita que o 1% das pessoas tem
muito poder e influência além de deter grande parcela da riqueza global, e com
isso eu concordo. Mas o movimento, que começou nos Estados Unidos como uma
manifestação contra os acordos especiais feitos para beneficiar esse 1% mais
rico da população americana, não é claro. Ele não reconhece que, olhando para o
mundo inteiro, uma divisão maior de americanos, europeus e outras pessoas
influentes, estão pelo menos entre os 5% mais ricos; na verdade, muitos dos
partidários do Movimento Ocupe fazem parte desse grupo. Assim sendo, eu não
ouço muito sobre a obrigação desses 5% em ajudar os mais pobres em outras
partes do mundo. Talvez eles concordassem comigo nesse ponto, se eles se
dedicassem a isso. Espero que um dia alcancem esse objetivo.
FILOSOFIA ● Uma de suas propostas, dentro de seus estudos que
abordam a desigualdade social, diz que todos os trabalhadores deveriam entregar
10% de sua renda para resolver o problema da pobreza. Você acha que essa
proposta seria viável?
Singer ● Não, não acho que é viável, e, na verdade, não é o que
recomendo exatamente. Se você ler A vida que podemos salvar [editora Gradiva,
2009], ou for ao site que mantenho, www.thelifeyoucansave.org, poderá constatar que, para 90%
dos trabalhadores, recomendo uma percentagem menor que essa. Apenas para as 10%
das pessoas mais ricas que recomendo que deem 10% ou mais. Acho que essas
percentagens são viáveis e por isso recomendo esses níveis.
FILOSOFIA ● Qual é a diferença entre um dever e um ato de
caridade?
Singer ● Para muitos conceitos morais, incluindo a moralidade
convencional, existem os deveres, o que quer dizer que estamos errados se não
os fizermos. Mas há também ações que nos fazem bem, embora não seja errado não
fazê-las. Tipicamente, a caridade é vista como algo que faz bem, mas não é um
dever, então, não é errado não fazê-la... por outro lado, em alguns conceitos
religiosos, pagar o dízimo, ou dar um valor aos pobres, é um dever – por
exemplo, 10% para muitos cristãos e judeus. Então, oferecer essa ajuda seria um
dever para alguns enquanto para outros não seria. No entanto, de um ponto de
vista utilitarista, devemos fazer aquilo que resulte nas melhores consequências
para todos, e, então, seria errado não fazê-lo. Neste caso, a distinção entre
um dever e um ato de caridade não existe mais. Não podemos dizer que temos uma
vida ética enquanto temos acesso ao luxo e outros estão se esforçando para
alimentar suas famílias e não têm condições básicas de saúde Mesmo para pessoas
que não são utilitaristas, eu diria que, dada a grande diferença entre ricos e
pobres, os ricos têm o dever de compartilhar parte da sua riqueza com os
pobres. Não podemos declarar que estamos vivendo uma vida ética enquanto
vivemos com luxo e outros estão se esforçando para alimentar suas famílias ou
acabam assistindo suas crianças morrerem por não conseguirem ter condições
básicas de saúde.
FILOSOFIA ● Seguindo a lógica de que é mais provável que
pessoas ajudem quando o sofrimento é visível, as redes sociais estão ajudando a
aliviar o sofrimento no mundo simplesmente porque expõem os problemas do mundo?
Singer ● Penso que pode estar ajudando, sim. Mas não tenho
nenhuma evidência real disso, e fico relutante em falar sobre assuntos fatuais
sem evidência.
FILOSOFIA ● Além de ser um filósofo, você é uma figura pública.
O filósofo pode desempenhar esse papel duplo ou você sente que a sua filosofia
não é muito bem compreendida na esfera pública?
Singer ● Acredito que filósofos podem e devem ter esse papel
duplo. Se filósofos falam somente com outros filósofos, a Filosofia fica
isolada do grande público. Particularmente na área da Ética, acredito ser mais
importante ainda a participação de filósofos com seus argumentos para
enriquecer o nível de debate público. O preço disso, como você sugere, é um
risco de que nossas opiniões sejam deturpadas. Mas é possível reduzir esse risco
por meio de uma posição clara. De qualquer maneira, esse é um preço que devemos
estar preparados para pagar.
FILOSOFIA ● Você já pensou em entrar no setor público?
Singer ● Já, sim. Fiz campanha para o Parlamento australiano
duas vezes nos anos 90, como candidato do Partido Verde, na Austrália. Mas não
esperava ser eleito porque, na época, o Partido Verde nunca tinha vencido nas
zonas onde estava concorrendo. Tive a maior votação que o partido conseguiu,
até aquela ocasião, nas eleições para o Parlamento australiano. Estou feliz de
dizer que, agora, o Partido Verde melhorou seu tamanho político na Austrália.
Nesse momento, eles possuem muitas cadeiras no Senado e uma no Congresso, o que
representa um equilíbrio de poder. Esse fato, com certeza, foi responsável pela
aprovação da legislação para um imposto para emissões de carbono. Mas não
lamento não ter sido eleito para o Parlamento. Logo depois da minha segunda
tentativa aceitei o cargo de professor de Bioética na Universidade de Princeton
e acredito que, em termos gerais, tenho mais influência como professor desta
Universidade do que teria como senador australiano.
(Laura Talchin é
americana, formada em Ciências Políticas pela Georgetown University.
Atualmente, mora no Rio de Janeiro e desenvolve pesquisas na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro sobre os conceitos de cidadania e o sistema de cotas
raciais, com bolsa da Fulbright.